Clarice Lispector
Na rua vazia as pedras vibravam de calor -
a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela
suportava.
Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E
como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de
momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que
fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser
ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava
sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma
bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já
habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um
irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da
esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um
basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o
cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem
donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele
cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos,
fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a
desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e
continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar
eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali
estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem
trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma
menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos,
entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se
quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que
só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza
aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo
afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.
Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os
joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem
uma só vez olhou para trás
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Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A
legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Ulyane.
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