quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Nota de Escritor # 3 >> Paulo Mendes Campos



SALVO PELO FLAMENGO

Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea um dívida séria, que torno pública neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado 

em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do 
interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por telegrama ou 
telefone.

Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário, homem de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar.
Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o 

apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua o gigante.

Se o leitor conhece um homem forte, mas muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma vaga idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas.
O empregado, demonstrando possuir um 

bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso. É hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado.

O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim. Indaguei do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte- americanos.
Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu 

jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira: - American! American!

Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros. Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria, voltando a vociferar, em um esforço 

lingüístico que contraía todos os músculos de seu rosto: - American! Dollar! No like!

As palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de um eloqüência que teria destruído Catilina muito mais depressa que os discursos de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois uma polêmica oratória nestes termos:

- American!
- No, brazilian!
- American!
- Brazilian!
Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
- Brazil?! No american? Brazil?
Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo:
- Yes, Brazil!
Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:
- Brazil?
- Brazil, Brazil.
Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:
- Flamengo!! Flamengo!!
Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores.

O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:

- I Flamengo! I Rubens!
Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:
- You! Flamengo?
Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:
- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!






Abraço, Ulyane

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

EU E AS MINHAS ADMIRAÇÕES



Admiro aqueles corajosos que defendem a verdade acima de tudo, afinal, é melhor uma verdade doída do que a mentira saborosa. Não é assim que dizem? Admiro aqueles que não têm medo de exibir, “doa a quem doer” seus pensamentos de forma clara, suas verdades desmedidas e uma sinceridade ácida que passa por cima de qualquer regra social. Admiro aqueles espontâneos que falam o que vier à tona, na hora em que vier, na frente de quem tiver.
Mas eu não sou da turma dos corajosos, não nasci com essa coragem entranhada em meu peito. Pertenço ao grupo dos covardes, aqueles que omitem o que pensam com medo da rejeição. Aqueles fracos que quando perguntados se a amiga está gorda, respondem que não, mesmo que ela esteja bem nutrida, nutrida até demais. Você sabe de quem eu estou falando, não sabe? Daqueles covardes que preferem calcular tudo o que vão fazer e dizer, para não machucar ninguém em volta e ainda assim, os cálculos nem sempre saem corretos. Daí os covardes erram e se sentem idiotas, os maiores do mundo.
Ser covarde é tão difícil, chato e desleal... Tamanho é o medo de passar uma imagem negativa, que eles acabam se privando de algumas coisas, de algumas pessoas.E a hipocrisia? Bom, é melhor nem comentar o quanto um covarde é hipócrita. Por isso você já sabe, nunca confie em uma covarde como eu para pedir opinião. Não sei de onde os corajosos tiram tanta bravura para serem assim, também não sei de onde os covardes tiram tanto medo de errar.
Mas eu peço desculpas em nome de todos os covardes, pois no fundo só não queremos perder nossos amigos, nosso amor ou nossa simples timidez. E não queremos deixar que palavras inúteis machuquem quem tanto amamos, porque esses pequenos desabafos que a vida proporciona, não são nossas verdadeiras verdades, pois preferimos a verdade de apreciar o sorriso de quem nos rodeia do que a coragem de soltar comentários ácidos que podem matar.
Abraço, Ulyane

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Nota de Escritor # 2 >> Caio Fernando Abreu



EXTREMOS DA PAIXÃO

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante
lá vem o amor nos dilacerar de novo..."
Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro (a) mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo (a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo (a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe,berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.
Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolos em face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
O Estado de S. Paulo, 8/7/1986
Abraço, Ulyane